O Doutrinador
O Doutrinador
O DOUTRINADOR
Num grupo mediúnico, chama-se doutrinador a pessoa que se incumbe de dialogar com os companheiros desencarnados necessitados de ajuda e esclarecimento. Qualquer bom dicionário leigo dirá que doutrinar é instruir em uma doutrina, ou, simplesmente, ensinar. E aqui já começamos a esbarrar nas dificuldades que a palavra doutrinador nos oferece, no contexto da prática mediúnica.
Em primeiro lugar, porque o espírito que comparece para debater connosco os seus problemas e aflições, não está em condições, logo aos primeiros contactos, de receber instruções doutrinárias, ou seja, acerca da Doutrina Espírita, que professamos, e com a qual pretendemos ajudá-lo. Ele não vem disposto a ouvir uma pregação, nem predisposto ao aprendizado, como ouvinte paciente ante um guru evoluído. Muitas vezes ele está perfeitamente familiarizado com inúmeros pontos importantes da Doutrina Espírita.
Sabe que é um Espírito sobrevivente, conhece suas responsabilidades perante as leis universais, admite, ante evidências que lhe são mais do que óbvias, os mecanismos da reencarnação, reconhece até mesmo a existência de Deus.
Quanto à comunicabilidade entre encarnados e desencarnados, ele nem discute, pois está justamente produzindo uma demonstração prática do fenômeno, e seria infantilidade de sua parte tentar ignorar a realidade.
Portanto, o companheiro encarnado, com quem estabelece o diálogo, não tem muito a ensinar-lhe, em termos gerais de doutrina.
Por outro lado, o chamado doutrinador não é o sumo-sacerdote de um culto ou de uma seita, que se coloque na posição de mestre, a ditar normas de ação e a pregar, presunçosamente, um estágio ideal de moral, que nem ele próprio conseguiu alcançar. A despeito disso, ele precisa estar preparado para exercer, no momento oportuno, a autoridade necessária, que toda pessoa incumbida de uma tarefa, por mais modesta, deve ter.
Não se esquecer, porém, de que, no grupo mediúnico, ele é apenas um dos componentes, um trabalhador, e não mestre, sumo-sacerdote ou rei.
Sua formação doutrinaria é de extrema importância. Não poderá jamais fazer um bom trabalho, sem conhecimento íntimo dos postulados da Doutrina Espírita. Entre os espíritos que lhe são trazidos para entendimento, há argumentadores prodigiosamente inteligentes, bem preparados e
experimentados em diferentes técnicas de debate, dotados de excelente dialética. Isto não significa que todo doutrinador tem de ser um gênio, de enorme capacidade intelectual e de impecável formação filosófica. A conversa com os espíritos desajustados não deve ser um frio debate acadêmico. Se o dirigente encarnado dos trabalhos está bem familiarizado com as obras fundamentais do Espiritismo, ele encontrará sempre o que dizer ao manifestante, ainda que não esteja no mesmo nível intelectual dele.
O confronto aqui não é de inteligências, nem de culturas; é de corações, de sentimentos. O conhecimento doutrinário torna-se importante como base de sustentação. O doutrinador precisa estar convencido de que a Doutrina Espírita dispõe de todos os informes de que ele necessita para cuidar dos manifestantes em desequilíbrio, mas isso não é tudo, porque ele pode ser um bom conhecedor dos princípios teóricos do Espiritismo e ser completamente desinteressado do aspeto evangélico; ou, ainda, conhecer a doutrina e recitar prontamente qualquer versículo evangélico, mas não apoiar o seu conhecimento na emoção e no legítimo desejo de servir e ajudar.
Voltaremos ao assunto quando tratarmos do problema específico da doutrinação. Os espíritos em estado de perturbação, que nos são trazidos às sessões mediúnicas, não estão, logo de início, em condições psicológicas adequadas à pregação doutrinária, como já dissemos. Necessitam aflitivamente de primeiros socorros, de quem os ouça com paciência e tolerância. A doutrinação virá no momento oportuno, e, antes que o doutrinador possa dedicar-se a este aspeto específico, ele deve estar preparado para discutir o problema pessoal do espírito, a fim de obter dele a informação de que necessita. É nesse momento que ele precisa utilizar-se de seus conhecimentos gerais, intercalando aqui e ali um pensamento evangélico que se adapte às condições desenvolvidas no diálogo.
Isto nos leva a outro aspeto importante: o "status" moral do doutrinador. Sua autoridade moral é importante, por certo, mas qual de nós, encarnados, ainda em lutas homéricas contra imperfeições milenares, pode arrogar-se uma atitude de superioridade moral sobre os companheiros mais desarvorados das sombras? Ainda temos mazelas e ainda erramos gravemente.
O espírito que debate connosco sabe de nossas inúmeras fraquezas, tanto quanto nós, e até mais do que nós, às vezes, por serem, frequentemente, companheiros de antigas encarnações, em que fomos, talvez, comparsas de desacertos hediondos. Ele nos vigia, observa-nos, analisa-nos e estuda-nos, de uma posição vantajosa para ele: na invisibilidade. Tem condições de aferir nossa personalidade e nossos propósitos, pela maneira como agimos em nosso relacionamento com os semelhantes. Percebe mais as nossas intenções, a intensidade e a sinceridade do nosso sentimento, do que o mero som das palavras que pronunciamos. Se estivermos recitando lindos textos evangélicos, sem sustentação na afeição legítima, ele o saberá também.
Muitas vezes, refere-se desabridamente a uma ou outra fraqueza íntima nossa, como, por exemplo:
— Você não tem força para deixar o vício de fumar, como quer me obrigar a deixar de perseguir aquele que me prejudicou?
Ou então, nos lembra uma situação irregular em que nos encontramos, ou um erro mais grave cometido no passado recente, ou crimes que praticamos em vidas pregressas. Tudo serve. É preciso que o doutrinador esteja preparado para estas situações. Não adianta exibir virtudes que não possui ainda. Deve lembrar-se, porém, de que somos julgados e avaliados, não pelos resultados que obtemos, mas pelo esforço que realizamos para alcançá-los.
Não é preciso ser santo, para doutrinar. Aqueles que já se purificaram a esse ponto, dedicam-se a tarefas mais complexas, de maior responsabilidade, compatíveis com o adiantamento espiritual que já alcançaram.
Por outro lado, não podemos esperar a perfeição para ajudar o irmão que sofre. É exatamente porque ainda somos tão imperfeitos quanto ele, que estamos em condições de servi-lo mais de perto. Muitos são desafetos antigos, que ainda não nos perdoaram. É aqui que vemos a validade da palavra sábia do Cristo:
— Reconcilia-te com o teu adversário, enquanto estás a caminho com ele.
Não podemos impor ao companheiro infeliz uma superioridade moral inexistente. O doutrinador é também um ser falível e consciente das suas imperfeições, mas isto não pode e não deve inibi-lo para a tarefa. É preciso levar em conta, ainda, que muitos companheiros espirituais desarvorados, que nos conheceram em passado tenebroso, vêm em nós mais aqueles que fomos do que o que somos hoje, ou pretendemos ser.
Se tivermos paciência e tolerância, o manifestante acabará por admitir que, mesmo que ainda não tenhamos alcançado os estágios superiores da evolução, nossa boa intenção é legítima, o esforço que desenvolvemos é digno, e nos respeitarão por isso. O doutrinador precisa, ainda, ser uma criatura de fé viva, positiva, inabalável.
Ele não pode dar aquilo que não tem. Se me perguntassem qual o elemento mais importante na estrutura da personalidade do doutrinador, eu não saberia dizer, mas ficaria indeciso entre a fé e o amor, sobre o qual ainda falaremos adiante.
Que tipo de fé?
A fé espírita, tal como a conceituou Kardec: sincera, convicta, lógica, plenamente suportada pela razão, mas sem se deixar contaminar pela frieza hierática do racionalismo estéril e vazio.
Façamos uma pausa na exposição, para um exame da fé, que tanto nos interessa, neste, como em tantos outros contextos.
Livro: Diálogo com as Sombras - Herminio de Miranda